terça-feira, 23 de fevereiro de 2010


Carlos Fernando
Superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional e fundador do Bloco de Segunda, fala sobre o carnaval de 2010
e sobre a construção do prédio da Eletrobrás na Lapa.

Carlos Fernando é um carioca da gema. Desses que, a exemplo de Fernandinha Abreu, pode bater no peito e tirar onda: “Quero meu crachá. Sou carioca”.
Nascido no Leblon e criado em Botafogo, o arquiteto e folião é uma dessas pessoas que frequenta as boas coisas que a cidade oferece: praia, roda de samba, exposições, bares e blocos carnavalescos. Seu fascínio pelos blocos é tanto que, há 22 anos, numa segunda-feira de carnaval, estava na praia com mais dois amigos e por se sentirem indignados por não haver nenhum bloco na segunda-feira que pudessem curtir, decidiram criar o Bloco de Segunda, que se transformou numa ótima opção do carnaval de rua carioca.
Sempre bem-humorado, torcedor do Fluminense, conhecendo a cidade como poucos e em seus mínimos detalhes, Carlos Fernando tem nas mãos uma grande responsabilidade cultural, histórica, patrimonial e social para com o Rio: ele ocupa a superintendência do Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico Nacional – há três anos. Uma das atribuições da função que exerce é autorizar ou não a construção de novos prédios na cidade e avaliar o impacto que essas construções podem causar em todos os níveis.
Nesta entrevista, além de falar do carnaval, comenta também um dos assuntos que tomou conta da cidade nas últimas semanas, que é a construção de prédio da Eletrobrás na Lapa.

Capital Cultural – De trabalho falamos depois. Vamos começar falando do carnaval. O que você achou desse carnaval do “Choque da Ordem”?
Carlos Fernando – Achei muito bom. Em vinte anos que faço e participo do carnaval de rua do Rio, esse foi sem dúvida alguma o melhor. Acho que essa coisa do carnaval barato, onde as pessoas podem comprar uma peruca de R$ 5, tomar 3 latinhas de cerveja por R$5, é mesmo bem legal. Gosto muito de poder curtir o bloco no seu bairro, próximo à sua casa. Pelo que vi, li e ouvi comentários, foi tudo muito pacífico, muito harmônico. O carnaval carioca, a cada ano, vem resgatando essa coisa de quem mora nessa cidade se identificar com ela e poder curti-la à vontade, que é muito saudável. Minha avaliação sobre o carnaval deste ano é a melhor possível.

Capital Cultural – A grande discussão girou em torno do banheiro químico e das prisões que aconteceram porque tinha gente fazendo xixi nas ruas...
Carlos Fernando – Essa é uma questão antiga, a discussão é importante e precisava mesmo ser levada adiante, com alguma iniciativa enérgica por parte do poder público. Temos mesmo que melhorar as condições de quem quer brincar o carnaval civilizadamente e de forma ordeira. Percebi, entretanto, que o debate se transformou numa discussão um tanto quanto histérica. Os jornais deram uma importância muito grande a essa polêmica e me deixou intrigado, por exemplo, com o pouco espaço que se deu à morte de uma menina no Aterro do Flamengo. Eram páginas e páginas com noticiário sobre os mijões e um espaço muito pequeno para outras notícias. Mas o carnaval como um todo foi muito bom, a Prefeitura procurou trabalhar e criar condições para melhorar os desfiles dos blocos. Isso foi muito positivo para todos nós. A preocupação com o ordenamento foi boa e colaborou muito, mas existem outras coisas que me preocupam, como por exemplo, carrinhos com botijões de gás no meio dos foliões. Imagina o dia em que um botijão daqueles explodir. Aquilo é morte anunciada. Não ter ambulantes vendendo cerveja deixou os blocos evoluírem, colaborando muito para a festa. As pessoas comentam que nosso carnaval é o mais democrático; concordo com isso, aqui entre nós, essa coisa do abadá não foi aceita. Não cresceu.

Capital Cultural – Essa é outra discussão e muita gente teme que o abadá acabe chegando por aqui. O que você pensa sobre o assunto?
Carlos Fernando – Há vinte anos passo o carnaval no Rio e não sei como anda isso lá em Salvador. Quando passei o carnaval em Salvador, há muitos anos, ainda não tinha essa coisa dos camarotes. Naquele tempo era algo natural, os amigos identificavam seus iguais usando uma camiseta, o que de certa forma é uma coisa normal. Aqui no Rio isso já acontece. Soube que alguns blocos estão botando cordas e criando uma área para a pessoa que estiver usando a camiseta do bloco. Isso talvez seja necessário, pois bloco é bloco, é para um agrupamento de pessoas que se identificam e decidem fazer uma festa. Bloco não pode ser só uma multidão anônima. Algum grupo realiza e se responsabiliza por aquele movimento.

Capital Cultural – Essa discussão é interessante e complexa. Ao mesmo tempo em que rejeitamos o abadá, sentimos a necessidade de estarmos com os nossos iguais dentro de um determinado bloco.
Carlos Fernando – Acredito que incentivar o aumento do número de blocos é muito benéfico. O que as pessoas precisam entender é que o bloco é uma irmandade, tem uma identidade. Tem o seu samba, sua camiseta e quem se propõe a colocar um bloco na rua está cercado de responsabilidades por todos os lados. O nome já diz, é um bloco, não uma multidão. Temos que ter cuidado para o carnaval não cair num anonimato total e os blocos perderem essa característica de ser bloco, um grupo de pessoas que se identificam e se juntam para brincar o carnaval. Vivemos nesse dilema, pois o anônimo chega e se apropria de uma festa que não é sua, mas por ser um espaço democrático, ele esta naturalmente convidado. Ele chega sem saber o samba, sem saber quem é aquela gente, como é regida a relação entre aquelas pessoas e se enturma sem nenhum problema. Tem pessoas que reclamam que o bloco tem samba próprio e que deveriam tocar vários sambas e várias músicas. Esquecem que a proposta não é essa. Acho, inclusive, que o samba dos blocos tomou um pouco o lugar das marchinhas e falam dos problemas locais, criticam os governantes e sempre usam de forma muito sábia a ironia com os problemas políticos, sociais e cotidianos. Isso é engraçado, pois a pessoa chega anônima, avulsa e participa da festa. O mais curioso é que ela não foi ali para sentar na arquibancada, como ocorre na Marquês de Sapucaí e assistir, ela foi ali para participar. Sente-se como um dos proprietários do bloco, um sócio de carteirinha, mesmo sem nunca ter aparecido.

Capital Cultural – O que mais te fascina nessa cidade?
Carlos Fernando – Trabalho muito com essa ideia da paisagem cultural. Trabalhamos esse conceito de capital como paisagem cultural. Gosto desse mecanismo de nos utilizarmos da paisagem, modificá-la, criar, transformar uma cidade, sendo impossível você a desligar da paisagem. Não são todas as cidades que são assim. O que faz essa diferença no Rio é a apropriação, é a utilização da paisagem. Isso é uma das coisas que mais fascina. Dialeticamente, a cultura interfere na paisagem, mas esta também interfere na cultura. O carioca é um ser que responde muito bem a essa relação de cidade, paisagem, cultura. Em muitos momentos parece uma coisa só. O carnaval no Rio e o futebol representam um pouco isso. Essa capacidade de fazer cultura das coisas que nos cercam, do que esta às nossas mãos, ao nosso redor, do que dispomos. Penso que os blocos são uma consequência disso.
A arquitetura da cidade

Capital Cultural – Nas últimas semanas fomos tomados por essa discussão sobre a construção do prédio da Eletrobrás na Lapa. Qual sua opinião sobre o assunto?
Carlos Fernando – Fui consultado informalmente. Não houve uma consulta de apresentação de projeto formal pela Prefeitura ou por quem quer seja, mas houve uma reunião aqui no IPHAN, em que me mostraram um estudo para dois terrenos na rua dos Arcos: um em frente à Fundição Progresso e outro entre a Fundição e a Catedral. Um dos terrenos está dentro do Corredor Cultural; o outro não. Observei que, se o prédio fosse totalmente horizontal, ele encobriria os Arcos no sentido de criar um fundo, o que não concordei, pois acho que essa possibilidade de ver os Arcos vazados deve ser mantida. Minha proposta foi para que na construção localizada dentro do corredor cultural fosse mantida a escala da área, com três pavimentos. Já em relação ao outro terreno localizado fora do Corredor Cultural, mais voltado para a Explanada de Santo Antônio e não tão próximo aos Arcos, se fosse construído um prédio o mais recuado possível dos Arcos e o mais próximo possível da Av. Chile. Por estar afastado da , ele deverá ganhar em altura, permitindo que ocupe um percentual muito pequeno do terreno. Esse prédio estaria dialogando com os outros que se encontram na Av. Chile, sem causar qualquer interferência ou prejuízo à arquitetura da Lapa. Não seria apenas um prédio a mais, seria um prédio que enriqueceria a arquitetura da região. Penso que na falta de compreensão reside a polêmica. Não seria um prédio na Lapa, mas sim um prédio próximo à Av. Chile.

Capital Cultural – Algumas pessoas, dentre elas o Augusto Ivan, que é um arquiteto conceituado, acreditam que a construção desse prédio possa trazer prejuízos à arquitetura e à paisagem local. Você trabalha com essa hipótese?
Carlos Fernando – Não vejo qualquer tipo de prejuízo à arquitetura. Ao contrário, percebo um grande ganho para a região. Veja bem uma coisa, ocupar essas partes vazias entre a Rua do Lavradio e a Mem de Sá, e todo o entorno dos Arcos da Lapa, será altamente benéfico. Tem que ser uma obra bem feita. Não podemos trabalhar com um falso antigo. É preciso construir alguma coisa que mantenha o ritmo das fachadas. É necessário refazer a moldura daquele quarteirão. Aqueles vazios – terrenos baldios e estacionamentos – deixaram a área com um aspecto muito ruim, de abandono. É preciso uma construção nova, bem cuidada, contemporânea, que obedeça ao ritmo de seu entorno. É preciso que se recupere aquela área. Uma construção ali não criará qualquer prejuízo, pois o prédio que for instalado não vai dialogar com os Arcos e sim se harmonizar com os prédios da Av. Chile.

Capital Cultural – Quem exatamente se beneficiaria com essa construção?
Carlos Fernando – A cidade seria a grande beneficiada. Primeiro porque faria com que a vida diurna do Centro se tornasse mais intensa, mais movimentada. Ganhariam as Casas, os restaurantes, pois poderiam aumentar suas receitas e gerar mais empregos, ganhariam os moradores, pois a construção melhoraria as instalações de água, esgoto, iluminação, e ganharia a cidade, pois acabaria com dois vazios urbanos que são temerários numa área onde se pretende revitalizar. Seria muito bom para a área e para o Rio, pois a Lapa ganharia vida e impulsionaria ainda mais a cidade.

Capital Cultural – Essa é a maior polêmica que você enfrentou enquanto superintendente do IPHAN?
Carlos Fernando – Não, de jeito nenhum. A maior polêmica foi as transformações que pretendiam fazer na Marina da Glória. Ali eu me opus, pois era algo extremamente agressivo para a cidade. O prédio da Eletrobrás não chega a ser uma coisa polêmica, pois é possível fazer aquela edificação sem causar danos para o Patrimônio e sem criar problemas ambientais.

Capital Cultural – Por ser um carioca estudioso da cidade e pelo cargo que ocupa, você é uma das pessoas com mais autoridade para falar sobre o Rio. O que aconteceu com a Lapa, um bairro que parece ter parado no tempo e caído no esquecimento de nossas autoridades?
Carlos Fernando – A Lapa foi preterida primeiro pelo próprio Centro da cidade e depois pela Zona Sul. A partir dos anos 40 se transformou em uma região esquecida tanto pelo capital imobiliário, quanto em relação aos investimentos públicos. Outras partes da cidade receberam investimentos e a Lapa foi ficando para depois. Quando fizeram o desmonte do Morro de Santo Antônio, a situação piorou ainda mais, pois o plano inicial era fazer uma Avenida Norte-Sul, que seria a continuação da atual República do Paraguai; o que se previa era uma grande demolição da Lapa, então aquela área tenderia a ter o mesmo destino do Catumbi: um lugar de passagem. Com o abandono da ideia de criar uma via Norte-Sul, que foi substituída pela construção dos túneis Santa Barbara e Rebouças, a Lapa ficou com um enorme estoque de prédios abandonados ou subutilizados. Mas desse abandono acontece uma coisa inesperada e fenomenal, pois o que era um lugar abandonado se tornou um grande atrativo no final da década de 90. O que eram imóveis antigos, subutilizados e consequentemente desvalorizados, com aluguel muito barato passam a ser vistos de outra forma. Desse quadro caótico as coisas começaram a mudar: primeiro surgiram os antiquários, depois o Lavradio 100 (bar e antiquário), que deu uma tônica e iniciou toda aquela transformação. A Lapa passa a ser um projeto de revitalização a partir de sua vida cultural. Hoje suponho que os aluguéis estejam altíssimos.

Capital Cultural – Você diria que hoje há uma Lapa pública, com Casas promovendo shows de primeira qualidade e oferecendo o que há de melhor na cidade; e outra Lapa privada, mais abandonada, descuidada...
Carlos Fernando – Penso que sim, que existem essas duas Lapas, mas acredito também que uma não vive sem a outra. Tanto uma Lapa quanto a outra me transmitem uma sensação de segurança que não sinto em outras partes da cidade. Não diria Lapa pública e privada, mas uma Lapa mais sofisticada e outra menos sofisticada. Isso varia em função do bolso de cada um. Você tem a opção de Casas que cobram mais caro e o ambulante que vende três latinhas de cervejas por R$ 5. Tendo a pensar que qualquer choque de ordem na Lapa tem que ser muito bem cuidado, pois você está lidando com um equilíbrio muito delicado. As Casas estão lá e oferecem um tipo de produto que é sofisticado, mas que ao mesmo tempo é exótico. A Lapa se transformou em bela e mágica, as Casas estão ali, se solidificaram ali. Porque esse fenômeno não ocorreu em Ipanema ou na Barra? É um bairro com identidade e características próprias.

Capital Cultural – Você acha que seria exagero dizer que, em se tratando de ebulição cultural, a Lapa é a azeitona dessa empada chamada Rio de Janeiro?
Carlos Fernando – Não sei se na receita da empada se usa fermento, mas diria que a Lapa se transformou no próprio fermento desta cidade; na pérola principal. Já que estamos num período de carnaval, observe que muitos blocos vão fazer seus ensaios e se apresentar na Lapa. Não é por acaso que o Carioca da Gema é um trecho do samba do Simpatia é Quase Amor.

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