quarta-feira, 20 de junho de 2012

Áurea Martins - Entrevista




Além da invisibilidade midiática
permanentemente presente...

A mídia cria mitos, fenômenos, e celebridades todos os dias e da noite para o dia. Em alguns casos artistas sem valor, sem qualquer qualidade, mas por serem bem apadrinhados, bem relacionados ou com dinheiro o suficiente para pagar jabás, conseguem ganhar capas de jornais e desataque em  programas de televisão. A regra do jogo tem sido assim, mas felizmente, e para o bem geral da nação, toda regra tem exceção.

            Áurea Martins é uma dessas exceções. Não “explodiu”, não conseguiu o sucesso que poderia obter por sua qualidade, mas a máquina da visibilidade midiática, a grande fábrica dos jabás, de alienação e alienados, não fez com fosse mais uma que caísse no esquecimento.

            Se o termômetro para se medir a qualidade de uma cantora fossem seus fãs e admiradores, Áurea seria uma das mais consagradas: se curvaram a seu talento, dentre outros. Elizete Cardoso, que saia de casa só para vê-la cantar, Hermínio Belo de Carvalho, um de seus maiores admiradores, além de Alcione, Emilio Santiago, Djavan e mais recentemente Moyseis Marques, que fez uma música em sua homenagem em seu último Cd.

 

Áurtea, uma figura além dos "esquemões"

Não precisaram os holofotes da mídia globalizada, alienada e alienante se voltar para a talentosa cantora.  Desde que saiu de Campo Grande, bairro de subúrbio do Rio de Janeiro, até ser agraciada em 1969, no palco do Theatro Municipal quando se sagrou vencedora do programa “A Grande Chance”, comandado de Flávio Cavalcanti,  Áurea sempre teve luz própria e sempre se fez presente.
            A premiação naquele que era um dos programas mais importantes da época, onde levou nota dez de todos os jurados veio três anos depois, em 1972, com a gravação do primeiro LP, “Amor e Paz”, com Luizinho Eça e a participação do escritor Paulo Mendes Campos declamando poemas de Vinicius de Moraes
            A trajetória daquela escurinha chamada Adilma Pereira dos Santos com seu sorriso encantador , reluzente e áureo, se iniciou, na verdade, no início da década de 60. Foi nesta época, que ganhou de Paulo Gracindo que ao lado de Mário Lago apresentava o programa “Tribunal de Melodias”, na Rádio Nacional, o apelido de Áurea. Segundo Gracindo “seu sorriso era reluzente como ouro”.  Na ocasião a jovem e encantadora cantora dividia palco com nomes consagrados como os de Ângela Maria e Zezé Gonzaga, e outros que logo iriam estourar como Elis Regina.
            O tempo passou os atores e personagens foram mudando, mas Áurea sempre se fez presente. Nas décadas de 70 e 80, dividiu o palco com diversos cantores importantes como Alcione, Emílio Santiago, Elza Soares, Johnny Alf, Baden Powell, Cauby Peixoto, Mílton Nascimento, Marisa Gata Mansa, Carmen Costa, Dona Ivone Lara, Leci Brandão, Zezé Gonzaga, Nélson Sargento, Chico Feitosa, e outros. Na década de 90 participou das gravações dos songbooks de Tom Jobim e Chico Buarque, produzidos por Almir Chediak para a gravadora Lumiar.
            Ao longo da carreira, gravou poucos discos: apenas quatro: além do gravado com Luizinho Eça, em 1972, só em 2004 colocou seu segundo disco na praça, quando lançou o disco “Áurea Martins”. Finalmente em 2008 teve oportunidade numa grande gravadora quando lançou pela Biscoito Fino, o CD “Até Sangrar”. Um trabalho muito bem elaborado, que teve as participações de Francis Hime, Alcione e Emílio Santiago. Por este disco foi agraciada como Melhor Cantora no Prêmio da Música Brasileira de 2009. Em 2010, Áurea lançou, também pela Biscoito Fino, o CD “DePontaCabeça”,  comemorativo aos seus 70 anos e onde interpretava somente músicas com letras de Hermínio Bello de Carvalho.
            No início de 2000, foi uma das primeiras a se apresentar no Rio Scenarium e no Carioca da Gema, as duas casas de samba que mais se projetaram na denominada renovação da Lapa. É hoje uma das figuras mais queridas e respeitadas pela nova geração de cantores e compositores da cidade e tida para muitos como referência de uma vida profissional exemplar.
            Não bastasse tudo isso, o curta-metragem “Áurea” de Zeca Buarque de Hollanda, que estreou em 2009, no Curta Cinema, no Rio, foi premiado em dez festivais no Brasil, além de uma importante premiação na França. O filme fala do artista que trabalha na noite, e a realidade de Áurea, deixando o trabalho altas horas da madrugada, para pegar o ônibus e voltar à sua residência em Campo Grande.



Capital Cultural – Neste dia 8 de março comemoramos o Dia Internacional da Mulher.  Antes de falarmos de sua vida profissional, vamos falar desta condição de ser mulher na sociedade brasileira. Você é uma pessoa observadora, sensível e acima de tudo guerreira. As coisas melhoram muito para o universo feminino?
Áurea - Meu amigo, vou te dizer o seguinte: ser mulher em nossa sociedade é muito difícil. Uma barra pesada, muito pesada. Claro que hoje é muito mais fácil, mas ainda assim, é muito difícil. Ser mulher não é pra qualquer um. Poetizando vou te dizer o seguinte: quando uma mulher se rebela, quando se revela é muito mais forte que o homem. Minha situação e a de muitas outras mulheres é ainda mais complexa, pois ser mulher e negra em nossa sociedade é ainda muito mais complicado...

            Capital Cultural – Nossa... Começamos falando de um assunto complicado que é ser mulher e você trás ainda um assunto mais complexo que é ser mulher e negra... Tá bom... Então vamos falar de ser negro em nossa sociedade. Como é ser negro em nossa sociedade?
Áurea - Apesar de tudo e de muitos, te diria que ser negro em nossa sociedade é uma glória. Nossa sociedade é complexa, extremamente complexa, pois somos uma sociedade miscigenada e muita gente não tem consciência de seu DNA. Não tem consciência de nada. Ter que lutar contra isso é uma barra. Te diria que pra ser negro no Brasil é preciso ser  forte. É um permanente exercício de força. A sociedade deveria louvar o negro, teria que botar num altar e reverenciar. Tudo para o negro é muito mais difícil. Digo mais com todas as dificuldades, com todas as formas de segregações que existem, se eu morrer amanhã e tiver a oportunidade de voltar, quero voltar negra. Orgulho-me de ser como sou.

            Capital Cultural – Nesta discussão de cor aconteceu uma coisa interessante, pois alguns brancos, principalmente da Academia, acham que o problema no Brasil não é de ordem racial e sim de classe social. Qual sua leitura sobre isso: nosso problema é de classe ou de raça?
Áurea – Esta discussão de classe é uma grande balela. Acho que alguns não querem assumir o preconceito existente em nossa sociedade. Você pega, por exemplo, o Pelé, que teoricamente seria o negro que mais conseguiu se projetar e volta e meia ele é motivo de piadinhas. Certa vez uma mulher declarou na minha frente: “quem esse negão pensa que é”? - Nem o Pelé esta livre do preconceito. Essa gente não aceita o negro se projetar. Essas pessoas são obrigadas a engolir a ascensão do negro, mas aceitar não, elas não aceitam. O preconceito no Brasil é uma coisa vergonhosa. Esse preconceito velado, camuflado que existe, mas que  fingimos que não existe é uma coisa patética e vergonhosa. Você se projeta, consegue seu espaço, mas há um recado implícito em tudo isso do tipo: “Oh você se deu bem, mas fique ai no seu cantinho”... É assim que funciona.

            Capital Cultural – de alguma maneira isso te revolta?
Áurea – De maneira nenhuma. Ser negro é ser forte, e ser nobre, lutador e capaz de passar por cima de todas essas besteiras, de todas essas fronteiras. Você vai aprendendo com a vida. Te digo o seguinte meu amigo: o problema não é ser mulher ou ser negra, o problema é ser preconceituoso. Isso sim é uma doença. Se alguns me olham de lado por ser negra, olho de frente para essas pessoas com extrema compaixão por serem pessoas doentes, pois preconceito, isso sim é uma doença.

            Capital Cultural - Ser mulher, ser negra, ser carioca.... Essa entrevista acontece num momento singelo, pois estamos próximos ao aniversário de 447 anos do Rio. Você já falou de ser mulher e ser negra, e ser carioca, como é isso? – É apenas um rótulo, um produto de marketing, ou de fato é diferente?
Áurea – Não é peça de marketing ou apenas um rótulo. Vai além, muito além. Te diria que ser carioca é um permanente estado de espírito. Tenho orgulho de ter nascido nesta cidade e viver aqui. É bom viver nesta cidade tão misturada, tão complexa, com tantas contradições, mas que apesar de tudo consegue manter o astral. É ótimo subir uma favela e ver o Rio de Janeiro lá de cima. Já passei horas da Rocinha vendo o Rio lá embaixo, as pessoas com maior poder aquisitivo, se deliciando, curtindo a vida tendo do bom e do melhor e por outro lado, o povo menos favorecido tendo que lutar, correndo atrás, batalhando, mas acima de tudo tendo esperança. Essa contradição de classe social é muito curiosa. Quem está lá em cima convive harmonicamente com quem está lá embaixo. O curioso de tudo isso é quem está lá em cima olha pra tudo isso com um olhar superior, pois está lá em cima, logo está por cima.

            Capital Cultural – Além de carioca, você é suburbana. Há nisso uma grande diferença, como é ser suburbano?
Áurea – É... tenho um suburbano coração. No subúrbio este estado de espírito carioca é mais solidário. Suburbano não perde manias que se adquiriu na infância e na juventude, como por exemplo, pedir açúcar ou pó de café ao vizinho. Pra muitos isso é pobreza, mas para o suburbano é solidariedade. O suburbano é sempre preocupado com o outro. É fraterno, mas despojado, participa da vida coletiva da redondeza. Lá a concorrência é menor e a vida mais coletiva. A parte da cidade cercada de concreto e edifícios e medida por status social é mais individualista é mais competitiva e indiferente.
 
            Capital Cultural – Ricos e pobres... Contradição social é uma coisa curiosa e perversa. Poucos tendo muito, muitos não tendo quase nada. Qual a sensação isso te causa?
Áurea – Observo e lamento essa desigualdade, mas em tudo isso, me sinto orgulhosa e durmo bem todas as noites. Nunca mexi em nada de ninguém. Nunca tive essa ânsia do ter, do poder. Nunca armei, nunca roubei, nunca criei situações escusas de favorecimento. Nunca coloquei um puto no bolso do dinheiro público. Os valores estão invertidos, as pessoas fazem o que querem roubam quando querem e nada acontece. É lastimável, mas é assim que funciona. Neste sentido a sociedade está doente.

            Capital Cultural – Você falou em dinheiro público, armação, favorecimentos, palavras que lamentavelmente nos faz lembrar de nossos políticos. Qual seu olhar sobre nossa classe política?
Áurea – Olha, eu tenho uma visão muito particular da política e vou na contramão de muita gente. Não acho que a política seja um lugar de pilantras, espertos e pessoas desonestas. Olho, por exemplo, a presidente Dilma fazendo faxina, tentando melhorar as coisas e não escondo que fico feliz. A culpa da maioria dos problemas que acontecem na política é nossa, da sociedade, de cada cidadão. Nós temos que vigiar, temos que tomar contar, ficar de olho. Não gosto desta coisa de desmoralizar a classe política. Não sei a quem isso interessa, mas sabemos que existe muita gente boa, muita gente honesta e preocupada com o país, com os problemas sociais e ambientais Nós é quem temos escolher de maneira certa. Se escolhermos pilantras, se votamos pensando em favorecimento em nos dar bem, pagamos um preço alto por isso. O político reflete a sociedade. Acreditar que só tem gente que não presta, seria acreditar no fim, no caos. Acredito muito na força dessa juventude.

            Capital Cultural – Juventude... Outro assunto complexo. Você acha esses meninos piores, melhores, mais integrados, mais alienados... Qual sua percepção dos jovens?
Áurea - Acho que a maior parte, que uma grande parte está muito antenada, muito informada com acesso à cultura, a informação e com isso em condições do discernimento. Há outra parcela completamente alienada e que as pessoas se aproveitam disso e procuram alienar cada vez mais. As comunidades mais carentes já não são compostas por pessoas bobas e ingênuas como no passado. Você não pode questionar que um menino que faz hip hop ou funk esteja ligado no que acontece à sua volta e ciente dos problemas que acontecem. Eles sabem dos problemas políticos e dos problemas sociais.  Tem muito menino de morro fazendo muita coisa boa e temos que respeitar levar em consideração e não desacreditar dizendo que isso é uma manifestação sem valor. Esses meninos descem para Lapa e dão conta do recado, mostram que sabem o que estão fazendo e estão fazendo com qualidade.

            Capital Cultural – Você falou em Lapa. Qual seu olhar sobre a Lapa, essa transformação do lugar com tantas casas, com tantos bares...
Áurea – A Lapa mudou e vem mudando muito. Algumas coisas melhoraram um pouco e outras pioraram muito. Talvez o maior problema é que uma parcela da burguesia tem se aproveitado, tem se apropriado  da Lapa e indo ali não para curtir todas as possibilidades culturais que existem, estão impondo, outros hábitos, outras manias e transformando aquilo apenas num modismo. Virou um lugar de playboyzinho mostrar camisa de grife e um ponto de “azaração”. Houve uma invasão de pessoas sem nada haver, sem nenhuma identidade.

            Capital Cultural – Já que falamos de Lapa, vamos falar de música. Como você vê essa safra de jovens e promissores cantores que surgiu na Lapa? – Você gosta do que tem visto?
Áurea - Gosto tanto que temo falar disso e cometer a injustiça de deixar algum nome de fora, e já de forma antecipada me desculpo se deixar de mencionar alguém. De cara vou falar do Moyseis Marques, que fez uma música em minha homenagem em seu novo disco que me deixou muito emocionada. Mas adoro toda essa gente, Alfredo Del Penho, Pedro Paula Malta, Nilze Carvalho, Elisa Addor, Ana Costa, Luiza, Dionizo, Lúcio Sanfillipo, Teresa Cristina, Mariana Bernardes, Verônica Ferriani e tem o Casuarina, o Sereno na Madrugada, Orquestra Lunar, o Grupo Semente.   Meu Deus... ficaria aqui falando nomes e nomes e ainda assim cometeria a injustiça de esquecer alguém.  São meninos muito inteligentes que vão fazer história.

            Capital Cultural – A exemplo do que aconteceu com você e com muitos outros de sua geração, essa safra que surge na Lapa tem encontrado muita dificuldade para se projetar. O mercado musical é muito perverso para esses novos valores.
Áurea – São poucas oportunidades para que se mostre o trabalho principalmente nas emissoras de rádio, por causa deste maldito jabá. Para tocar tem que pagar. Eu não pago, nunca paguei e acho que essa geração tem isso de positivo, pois não os vejo mendigando de emissora em emissora e se humilhando para jabazeiros e oportunistas. Eu não pago. Se depender de mim estão entubados, estão ferrados. Tem muita coisa boa que deixa de ser mostrada e muita coisa ruim e de péssima qualidade tocando toda hora. Esses caras pensam que nossos ouvidos são penicos. Mas enfim... Me orgulho da postura dessa garotada. São meninos dispostos, determinados que fazem pesquisa, estudam e me deixam muito orgulhosa.

            Capital Cultural – Cantar, ser cantora é um dom de poucos. Pra você o que é ser cantora, o que é ter esse dom?
Áurea  Em apenas uma frase, diria que cantar é sentir. É transmitir sentimentos. É ser uma atriz. É isso que penso.

            Capital Cultural – Você é uma mulher muito sofisticada por sua postura, por sua voz, por sua elegância e por saber se impor.  Por outro lado, você é bastante direta, não curte frescuragens, baboseiras, e, por exemplo, não esconde de ninguém que tem 72 anos. Como é ter 72 anos, como você se cuida?
Áurea – Esse negócio de esconder idade é pura vaidade, e vaidade é um dos grandes problemas de nossa sociedade.  Quanto a me cuidar, me alimento bem, faço caminhadas, não bebo, não fumo, não como carne, Minha alimentação é orgânica. Diria que sou uma pessoa em harmonia, e acho que a razão de viver bem e de terem me acontecido coisas tão boas, é que não desejo mal a ninguém. Faço o que posso para ajudar meu semelhante. Fazer bem me faz bem. Minha filosofia de vida é a solidariedade. Não podemos querer o mal, pois isso volta. Podem até achar que não, mas tudo que vai volta.

            Capital Cultural – Para terminar... O que você espera da vida, o que você espera conquistar?
Áurea   Menino... Sou uma pessoa abençoada. Todo dia agradeço a Deus pelas coisas que conquistei. Nunca desejei luxo, riqueza, excessos. O que mais posso querer? – O que mais posso querer conquistar? Estou feliz com a vida que me foi dada e com a parcela que me coube. Vivo de forma simples, mas sou uma pessoa feliz e harmônica.





 

Leia mais...

  ©Jornal Capital Cultural - Todos os direitos reservados.

Template by Dicas Blogger | Topo