Áurea Martins - Entrevista
permanentemente presente...
A mídia cria mitos, fenômenos, e celebridades todos os dias e da noite para o dia. Em alguns casos artistas sem valor, sem qualquer qualidade, mas por serem bem apadrinhados, bem relacionados ou com dinheiro o suficiente para pagar jabás, conseguem ganhar capas de jornais e desataque em programas de televisão. A regra do jogo tem sido assim, mas felizmente, e para o bem geral da nação, toda regra tem exceção.
Áurea Martins é uma dessas exceções. Não “explodiu”, não conseguiu o sucesso que poderia obter por sua qualidade, mas a máquina da visibilidade midiática, a grande fábrica dos jabás, de alienação e alienados, não fez com fosse mais uma que caísse no esquecimento.
Se o termômetro para se medir a qualidade de uma cantora fossem seus fãs e admiradores, Áurea seria uma das mais consagradas: se curvaram a seu talento, dentre outros. Elizete Cardoso, que saia de casa só para vê-la cantar, Hermínio Belo de Carvalho, um de seus maiores admiradores, além de Alcione, Emilio Santiago, Djavan e mais recentemente Moyseis Marques, que fez uma música em sua homenagem em seu último Cd.
Áurtea, uma figura além dos "esquemões"
Não
precisaram os holofotes da mídia globalizada, alienada e alienante se voltar
para a talentosa cantora. Desde que saiu
de Campo Grande, bairro de subúrbio do Rio de Janeiro, até ser agraciada em
1969, no palco do Theatro Municipal quando se sagrou vencedora do programa “A
Grande Chance”, comandado de Flávio Cavalcanti,
Áurea sempre teve luz própria e sempre se fez presente.
A premiação naquele que era um dos
programas mais importantes da época, onde levou nota dez de todos os jurados
veio três anos depois, em 1972, com a gravação do primeiro LP, “Amor e Paz”,
com Luizinho Eça e a participação do escritor Paulo Mendes Campos declamando
poemas de Vinicius de Moraes
A trajetória daquela escurinha
chamada Adilma Pereira dos Santos com seu sorriso encantador , reluzente e
áureo, se iniciou, na verdade, no início da década de 60. Foi nesta época, que
ganhou de Paulo Gracindo que ao lado de Mário Lago apresentava o programa
“Tribunal de Melodias”, na Rádio Nacional, o apelido de Áurea. Segundo Gracindo
“seu sorriso era reluzente como ouro”.
Na ocasião a jovem e encantadora cantora dividia palco com nomes
consagrados como os de Ângela Maria e Zezé Gonzaga, e outros que logo iriam
estourar como Elis Regina.
O tempo passou os atores e
personagens foram mudando, mas Áurea sempre se fez presente. Nas décadas de 70
e 80, dividiu o palco com diversos cantores importantes como Alcione, Emílio
Santiago, Elza Soares, Johnny Alf, Baden Powell, Cauby Peixoto, Mílton
Nascimento, Marisa Gata Mansa, Carmen Costa, Dona Ivone Lara, Leci Brandão,
Zezé Gonzaga, Nélson Sargento, Chico Feitosa, e outros. Na década de 90
participou das gravações dos songbooks de Tom Jobim e Chico Buarque, produzidos
por Almir Chediak para a gravadora Lumiar.
Ao longo da carreira, gravou poucos
discos: apenas quatro: além do gravado com Luizinho Eça, em 1972, só em 2004
colocou seu segundo disco na praça, quando lançou o disco “Áurea Martins”.
Finalmente em 2008 teve oportunidade numa grande gravadora quando lançou pela
Biscoito Fino, o CD “Até Sangrar”. Um trabalho muito bem elaborado, que teve as
participações de Francis Hime, Alcione e Emílio Santiago. Por este disco foi
agraciada como Melhor Cantora no Prêmio da Música Brasileira de 2009. Em 2010,
Áurea lançou, também pela Biscoito Fino, o CD “DePontaCabeça”, comemorativo aos seus 70 anos e onde
interpretava somente músicas com letras de Hermínio Bello de Carvalho.
No início de 2000, foi uma das
primeiras a se apresentar no Rio Scenarium e no Carioca da Gema, as duas casas
de samba que mais se projetaram na denominada renovação da Lapa. É hoje uma das
figuras mais queridas e respeitadas pela nova geração de cantores e
compositores da cidade e tida para muitos como referência de uma vida
profissional exemplar.
Não bastasse tudo isso, o
curta-metragem “Áurea” de Zeca Buarque de Hollanda, que estreou em 2009, no
Curta Cinema, no Rio, foi premiado em dez festivais no Brasil, além de uma
importante premiação na França. O filme fala do artista que trabalha na noite,
e a realidade de Áurea, deixando o trabalho altas horas da madrugada, para
pegar o ônibus e voltar à sua residência em Campo Grande.
Capital Cultural – Neste dia 8 de março comemoramos o Dia Internacional da Mulher. Antes de falarmos de sua vida profissional, vamos falar desta condição de ser mulher na sociedade brasileira. Você é uma pessoa observadora, sensível e acima de tudo guerreira. As coisas melhoram muito para o universo feminino?
Áurea - Meu amigo, vou te dizer o seguinte: ser
mulher em nossa sociedade é muito difícil. Uma barra pesada, muito pesada.
Claro que hoje é muito mais fácil, mas ainda assim, é muito difícil. Ser mulher
não é pra qualquer um. Poetizando vou te dizer o seguinte: quando uma mulher se
rebela, quando se revela é muito mais forte que o homem. Minha situação e a de
muitas outras mulheres é ainda mais complexa, pois ser mulher e negra em nossa
sociedade é ainda muito mais complicado...
Capital Cultural – Nossa...
Começamos falando de um assunto complicado que é ser mulher e você trás ainda
um assunto mais complexo que é ser mulher e negra... Tá bom... Então vamos
falar de ser negro em nossa sociedade. Como é ser negro em nossa sociedade?
Áurea - Apesar de tudo e de muitos, te diria
que ser negro em nossa sociedade é uma glória. Nossa sociedade é complexa,
extremamente complexa, pois somos uma sociedade miscigenada e muita gente não
tem consciência de seu DNA. Não tem consciência de nada. Ter que lutar contra
isso é uma barra. Te diria que pra ser negro no Brasil é preciso ser forte. É um permanente exercício de força. A
sociedade deveria louvar o negro, teria que botar num altar e reverenciar. Tudo
para o negro é muito mais difícil. Digo mais com todas as dificuldades, com
todas as formas de segregações que existem, se eu morrer amanhã e tiver a
oportunidade de voltar, quero voltar negra. Orgulho-me de ser como sou.
Capital Cultural – Nesta discussão
de cor aconteceu uma coisa interessante, pois alguns brancos, principalmente da
Academia, acham que o problema no Brasil não é de ordem racial e sim de classe
social. Qual sua leitura sobre isso: nosso problema é de classe ou de raça?
Áurea – Esta discussão de classe é uma grande
balela. Acho que alguns não querem assumir o preconceito existente em nossa
sociedade. Você pega, por exemplo, o Pelé, que teoricamente seria o negro que
mais conseguiu se projetar e volta e meia ele é motivo de piadinhas. Certa vez uma mulher
declarou na minha frente: “quem esse negão pensa que é”? - Nem o Pelé esta
livre do preconceito. Essa gente não aceita o negro se projetar. Essas pessoas
são obrigadas a engolir a ascensão
do negro, mas aceitar não, elas não aceitam. O preconceito no Brasil é uma
coisa vergonhosa. Esse preconceito velado, camuflado que existe, mas que fingimos que não existe é uma coisa patética
e vergonhosa. Você se projeta, consegue seu espaço, mas há um recado implícito
em tudo isso do tipo: “Oh você se deu bem, mas fique ai no seu cantinho”... É
assim que funciona.
Capital
Cultural – de alguma maneira isso te revolta?
Áurea – De maneira nenhuma. Ser negro é ser forte, e ser nobre, lutador e
capaz de passar por cima de todas essas besteiras, de todas essas fronteiras.
Você vai aprendendo com a vida. Te digo o seguinte meu amigo: o problema não é
ser mulher ou ser negra, o problema é ser preconceituoso. Isso sim é uma
doença. Se alguns me olham de lado por ser negra, olho de frente para essas
pessoas com extrema compaixão por serem pessoas doentes, pois preconceito, isso
sim é uma doença.
Capital
Cultural - Ser mulher, ser negra, ser carioca.... Essa entrevista acontece num
momento singelo, pois estamos próximos ao aniversário de 447 anos do Rio. Você
já falou de ser mulher e ser negra, e ser carioca, como é isso? – É apenas um
rótulo, um produto de marketing, ou de fato é diferente?
Áurea – Não é peça de marketing ou apenas um rótulo. Vai além, muito além. Te
diria que ser carioca é um permanente estado de espírito. Tenho orgulho de ter
nascido nesta cidade e viver aqui. É bom viver nesta cidade tão misturada, tão
complexa, com tantas contradições, mas que apesar de tudo consegue manter o
astral. É ótimo subir uma favela e ver o Rio de Janeiro lá de cima. Já passei
horas da Rocinha vendo o Rio lá embaixo, as pessoas com maior poder aquisitivo,
se deliciando, curtindo a vida tendo do bom e do melhor e por outro lado, o
povo menos favorecido tendo que lutar, correndo atrás, batalhando, mas acima de
tudo tendo esperança. Essa contradição de classe social é muito curiosa. Quem
está lá em cima convive harmonicamente com quem está lá embaixo. O curioso de
tudo isso é quem está lá em cima olha pra tudo isso com um olhar superior, pois
está lá em cima, logo está por cima.
Capital Cultural – Além
de carioca, você é suburbana. Há nisso uma grande diferença, como é ser
suburbano?
Áurea – É...
tenho um suburbano coração. No subúrbio este estado de espírito carioca é mais
solidário. Suburbano não perde manias que se adquiriu na infância e na
juventude, como por exemplo, pedir açúcar ou pó de café ao vizinho. Pra muitos
isso é pobreza, mas para o suburbano é solidariedade. O suburbano é sempre
preocupado com o outro. É fraterno, mas despojado, participa da vida coletiva
da redondeza. Lá a concorrência é menor e a vida mais coletiva. A parte da
cidade cercada de concreto e edifícios e medida por status social é mais
individualista é mais competitiva e indiferente.
Capital Cultural –
Ricos e pobres... Contradição social é uma coisa curiosa e perversa. Poucos
tendo muito, muitos não tendo quase nada. Qual a sensação isso te causa?
Áurea –
Observo e lamento essa desigualdade, mas em tudo isso, me sinto orgulhosa e
durmo bem todas as noites. Nunca mexi em nada de ninguém. Nunca tive essa ânsia
do ter, do poder. Nunca armei, nunca roubei, nunca criei situações escusas de
favorecimento. Nunca coloquei um puto no bolso do dinheiro público. Os valores
estão invertidos, as pessoas fazem o que querem roubam quando querem e nada
acontece. É lastimável, mas é assim que funciona. Neste sentido a sociedade
está doente.
Capital Cultural – Você
falou em dinheiro público, armação, favorecimentos, palavras que
lamentavelmente nos faz lembrar de nossos políticos. Qual seu olhar sobre nossa
classe política?
Áurea – Olha,
eu tenho uma visão muito particular da política e vou na contramão de muita
gente. Não acho que a política seja um lugar de pilantras, espertos e pessoas
desonestas. Olho, por exemplo, a presidente Dilma fazendo faxina, tentando
melhorar as coisas e não escondo que fico feliz. A culpa da maioria dos
problemas que acontecem na política é nossa, da sociedade, de cada cidadão. Nós
temos que vigiar, temos que tomar contar, ficar de olho. Não gosto desta coisa
de desmoralizar a classe política. Não sei a quem isso interessa, mas sabemos
que existe muita gente boa, muita gente honesta e preocupada com o país, com os
problemas sociais e ambientais Nós é quem temos escolher de maneira certa. Se
escolhermos pilantras, se votamos pensando em favorecimento em nos dar bem,
pagamos um preço alto por isso. O político reflete a sociedade. Acreditar que
só tem gente que não presta, seria acreditar no fim, no caos. Acredito muito na
força dessa juventude.
Capital Cultural –
Juventude... Outro assunto complexo. Você acha esses meninos piores, melhores,
mais integrados, mais alienados... Qual sua percepção dos jovens?
Áurea - Acho
que a maior parte, que uma grande parte está muito antenada, muito informada
com acesso à cultura, a informação e com isso em condições do discernimento. Há
outra parcela completamente alienada e que as pessoas se aproveitam disso e
procuram alienar cada vez mais. As comunidades mais carentes já não são
compostas por pessoas bobas e ingênuas como no passado. Você não pode
questionar que um menino que faz hip hop ou funk esteja ligado no que acontece
à sua volta e ciente dos problemas que acontecem. Eles sabem dos problemas
políticos e dos problemas sociais. Tem
muito menino de morro fazendo muita coisa boa e temos que respeitar levar em
consideração e não desacreditar dizendo que isso é uma manifestação sem valor.
Esses meninos descem para Lapa e dão conta do recado, mostram que sabem o que
estão fazendo e estão fazendo com qualidade.
Capital
Cultural – Você falou em
Lapa. Qual seu olhar sobre a Lapa, essa transformação do
lugar com tantas casas, com tantos bares...
Áurea – A Lapa mudou e vem mudando muito. Algumas coisas melhoraram um pouco
e outras pioraram muito. Talvez o maior problema é que uma parcela da burguesia
tem se aproveitado, tem se apropriado da
Lapa e indo ali não para curtir todas as possibilidades culturais que existem,
estão impondo, outros hábitos, outras manias e transformando aquilo apenas num
modismo. Virou um lugar de playboyzinho mostrar camisa de grife e um ponto de
“azaração”. Houve uma invasão de pessoas sem nada haver, sem nenhuma
identidade.
Capital Cultural – Já
que falamos de Lapa, vamos falar de música. Como você vê essa safra de jovens e
promissores cantores que surgiu na Lapa? – Você gosta do que tem visto?
Áurea - Gosto
tanto que temo falar disso e cometer a injustiça de deixar algum nome de fora,
e já de forma antecipada me desculpo se deixar de mencionar alguém. De cara vou
falar do Moyseis Marques, que fez uma música em minha homenagem em seu novo
disco que me deixou muito emocionada. Mas adoro toda essa gente, Alfredo Del
Penho, Pedro Paula Malta, Nilze Carvalho, Elisa Addor, Ana Costa, Luiza,
Dionizo, Lúcio Sanfillipo, Teresa Cristina, Mariana Bernardes, Verônica
Ferriani e tem o Casuarina, o Sereno na Madrugada, Orquestra Lunar, o Grupo
Semente. Meu Deus... ficaria aqui
falando nomes e nomes e ainda assim cometeria a injustiça de esquecer
alguém. São meninos muito inteligentes
que vão fazer história.
Capital Cultural – A
exemplo do que aconteceu com você e com muitos outros de sua geração, essa
safra que surge na Lapa tem encontrado muita dificuldade para se projetar. O
mercado musical é muito perverso para esses novos valores.
Áurea – São
poucas oportunidades para que se mostre o trabalho principalmente nas emissoras
de rádio, por causa deste maldito jabá. Para tocar tem que pagar. Eu não pago,
nunca paguei e acho que essa geração tem isso de positivo, pois não os vejo
mendigando de emissora em emissora e se humilhando para jabazeiros e oportunistas.
Eu não pago. Se depender de mim estão entubados, estão ferrados. Tem muita
coisa boa que deixa de ser mostrada e muita coisa ruim e de péssima qualidade
tocando toda hora. Esses caras pensam que nossos ouvidos são penicos. Mas
enfim... Me orgulho da postura dessa garotada. São meninos dispostos,
determinados que fazem pesquisa, estudam e me deixam muito orgulhosa.
Capital Cultural –
Cantar, ser cantora é um dom de poucos. Pra você o que é ser cantora, o que é
ter esse dom?
Áurea – Em apenas uma frase, diria que cantar é
sentir. É transmitir sentimentos. É ser uma atriz. É isso que penso.
Capital Cultural – Você
é uma mulher muito sofisticada por sua postura, por sua voz, por sua elegância
e por saber se impor. Por outro lado, você
é bastante direta, não curte frescuragens, baboseiras, e, por exemplo, não
esconde de ninguém que tem 72 anos. Como é ter 72 anos, como você se cuida?

Capital Cultural – Para
terminar... O que você espera da vida, o que você espera conquistar?
Áurea – Menino... Sou uma pessoa abençoada. Todo dia
agradeço a Deus pelas coisas que conquistei. Nunca desejei luxo, riqueza,
excessos. O que mais posso querer? – O que mais posso querer conquistar? Estou
feliz com a vida que me foi dada e com a parcela que me coube. Vivo de forma
simples, mas sou uma pessoa feliz e harmônica.